Medicina Humanizada X Medicina Mecanizada
Considero este um dos dilemas da medicina dos nossos dias.
A ciência, com sua lógica metafísica e matemática, sofrendo evolução violenta e incontestável nas últimas décadas, afastou os médicos dos males da alma, focando exclusivamente nos males do corpo. Surgiram as máquinas de diagnósticos e suas incríveis façanhas e seus custos mais incríveis ainda. Mais recentemente, com as políticas de extensão universal da saúde, com o estado assumindo o papel de seu promotor e com o advento dos planos de saúde e medicares da vida, houve a necessidade do barateamento do custo do profissional médico.
A saída para os médicos tem sido produzir mais em menos tempo. Surgem os super-especialistas, que tratam um tipo cada vez menor de doenças, com muito mais capacidade que os demais. Ocorre que desta maneira, a grande maioria dos doentes chega triado e tem rapidamente seus diagnósticos e condutas executadas. Se ganha tempo e precisão no trabalho. Se o problema não diz respeito ao profissional, basta indicar um colega especialista na área e a roda gira…
É uma tendência mundial. Recentemente visitei serviços nos EUA e na França onde cirurgiões realizam somente um tipo de cirurgia. As equipes são super treinadas e tudo acontece como numa linha de montagem, com rapidez e profissionalismo. Os avanços técnicos conseguidos nestes tipos específicos de cirurgia são tremendos. Aprendi muito sobre técnica cirúrgica nestes serviços. Mas aprendi pouquíssimo sobre estas doenças e nada sobre como evitá-las ou preveni-las.
Esta medicina tem a vantagem de, de certa forma, livrar o médico do doente, uma vez que ele chega já meio diagnosticado. Como a consulta é mais rápida, não há tempo para ouvir seus medos, traumas e lamentações. Este afastamento desafoga o médico porque é difícil ouvir. Não conseguimos ouvir direito nem nossos pais, nossos filhos, quanto mais um estranho ilustre desconhecido. Por outro lado, gera uma angústia tremenda. É muito comum os doentes saírem do consultório ainda cheios de dúvidas, muita coisa por falar, não entendendo adequadamente o que se passa com eles. Isso, mesmo tentando ignorar, angustia também o médico, porque a linguagem corporal fala por si só, nossas almas conversam a despeito das bocas falarem A ou B. Não ouvindo o doente, o médico perde o direito de também ser ouvido e, a despeito de arrogância ou altivez, também tem profundas angústias porque o que é dúvida de um lado, também é do outro. A necessidade humana de compreensão é universal.
Chegamos aos nossos dias, com muita tecnologia, muitos recursos e verdadeiras pandemias de ansiedade estampadas nas fibromialgias e dores miofasciais, nas lesões por esforço repetitivo, nas alergias e nas doenças auto-imunes, entre outras. Numa tentativa de minimizar esta ansiedade, nossas compulsões alimentares, tabagismo, etilismo, e as socialmente toleradas e até ovacionadas como por exercício físico, sexo, trabalho, consumo, etc.
Sendo as relações bilaterais, não se pode exigir do médico tratamento humanizado se ele não esta sendo tratado da mesma maneira. Quando apresentamos a ele um cartão de convênio que paga mal por sua consulta, estamos primeiramente colocando um terceiro na relação médico-paciente e em segundo lugar sendo coniventes com o tratamento que este terceiro lhe dá. Relação a dois pressupõe compromisso e sacrifício mútuo, relação a três nem sempre. Preso por limitações de ganho financeiro, de exames, de procedimentos, de auditorias, muitas vezes fica difícil que o médico consiga humanizar seu tratamento.
Alguns poucos médicos nos dias de hoje equilibram melhor tudo isso. Geralmente são aqueles que de alguma forma conseguem ganhar honorários adequados para que estejam inteiramente disponíveis aos pacientes por 30 a 60 minutos, com tempo adequado para uma boa história, exame físico, raciocínio diagnóstico e principalmente chamar o doente pelo nome, olhar nos seus olhos, se calar e ouvir… Consegue-se uma melhor compreensão do problema e maior adesão ao tratamento. A mudança de hábitos e atitudes, o cerne da maioria dos tratamentos, é mais provável. Menos exames são pedidos, menos medicações e menos cirurgias são indicadas. O atendimento costuma ser mais prazeroso para ambos e geralmente são ganhos amigos das duas partes, porque o relacionamento consegue avançar um pouco além da superficialidade.
Pessoalmente, prefiro este último tipo de medicina, a humanizada, porque ela satisfaz mais a mim e aos meus clientes. Entretanto, não deixo de reconhecer o tremendo avanço técnico e social que o sistema dominante, mesmo sendo imperfeito, gera na atenção à saúde. Mesmo porque como humanos, somos imperfeitos por natureza.
Alexandre Pagotto Pacheco
CRM 87053
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